Jeverson Nascimento
Resenha Livro: Ainda Feminismo
Organizado por André
S. Musskopf e Márcia Blasi,
o livro trata dos motivos pelos
quais ainda se deve falar em questões de gênero, tônica levantada por diversas correntes do movimento feminista
e apropriada por outros movimentos
sociais no combate às assimetrias de gênero, opressões, sexismos, homofobias e formas de violência. Organizado em quatro principais eixos
temáticos de discussão, a obra comporta artigos de pesquisadoras e pesquisadores dos estudos
de gênero, na qual são abordadas histórias de vida,
questões de gênero
e sexualidade, sexismo, violência e políticas públicas,
religião e teologia.
A despeito de avanços no que se refere às questões dos direitos das mulheres e daqueles sujeitos
que compõem as chamadas sexualidades
alternativas, ainda hoje as relações de poder, na qual estão
calcadas as assimetrias
de gênero, persistem enquanto fatores entendidos como componentes de uma suposta
“normalidade” das coisas.
Daí a necessidade de ainda ser
imprescindível investir nos debates apresentados ao longo dos artigos que compõem a obra. É em meio a tentativas de se
silenciar e secundarizar as discussões de gênero, não só nos debates que envolvem poderes públicos (haja
vista as recentes investidas de corren
tes conservadoras contra o que se convencionou chamar de “ideologia de gênero”), como também na marginalidade dos estudos de gênero na
academia, concatenadas à persistência de formas naturalizadas de hierarquização, discriminação e violência
cotidianas que se evidencia a pertinência de “Ainda Feminismo
e Gênero” (não à toa, todas as vezes
em que a palavra ainda aparece ao longo dos textos, recebe destaque
especial em itálico).
A primeira parte
do livro recebe
o título de “Histórias”. Ocupa-se
do relato das histórias de mulheres que subvertem, seja
no mundo religioso, no mundo do trabalho
ou em ambos, as condições
e posições que lhes
são impostas pela cultura patriarcal. Também sugere metodologias para que mulheres possam
narrar suas próprias histórias e ser protagonistas
de
sua vida. Essa é a proposta de Márcia Eliane Leindcker da Paixão,
na medida em que propõe trabalhar
uma hermenêutica feminista
atre- lada à metodologia
de histórias de vida no trabalho com mulheres em situação prisional. Segundo a autora,
dar voz a essas mulheres,
para falarem de si e de suas experiências, proporcionaria um caminhar para si que
lhes devolveria a dignidade perdida,
criando novas possibilidades de transformação na articulação entre o fazer e
o pensar.
As histórias também
são mostradas por meio da subversão política
realizada
por
mulheres
através
da formação em Técnica
Manual, mais especificamente a técnica do bordado. Mantida pela Associação Evan- gélica de Ensino e realizada pelo Instituto de Educação Ivoti
(IEI) e pelo Instituto Superior de Educação
Ivoti (ISEI), percebe-se como o trabalho manual, historicamente relegado à mulher por conta da naturalização
de sua postura de cuidadora
(em detrimento do trabalho intelectual
atribuído aos homens como expoentes da razão),
adquire um caráter político, no qual o saber artesanal
passa a ser visto como trabalho
e o conhecimento técnico-artístico passam a ser entendido
como saber cultural. O ato de bordar, neste deslocamento epistemológico, é enca- rado como expressão de si própria.
Amanda Motta Castro, por sua vez, apresenta a
história de uma tecelã e fiel da Assembleia de Deus (AD).
No ateliê em que trabalha, esta mulher passa a realizar um processo pedagógico não formal de ensina-
mentos religiosos em meio a uma crise econômica
que colocava incer-
tezas da continuidade em seu próprio
emprego e das demais tecelãs.
A situação a lhes assolar produziu
certo sentimento de solidariedade, no qual palavras de conforto, dotadas de profundo sentimento
religioso e de fé em Deus, assim
como breves leituras da Bíblia antes
do expediente de trabalho, passaram a fazer parte da rotina do ateliê. Esta liderança é identificada pela autora sob o nome fictício de Algodão, e explicita o paradoxo de ser alguém
que, embora reproduza os argumentos religio- sos que corroboram para
submissão da mulher,
consolida-se, por outro lado, como uma liderança feminina, desafiando a ideia institucionalizada de que o exercício de liderança
não é permitido às mulheres.
Versando sobre o papel das mulheres na Pastoral
Popular Urbana (PPU) na periferia
de cidades da Diocese de Caxias do Sul, Maria Bren- dalí Costa
salienta como a atuação destas
foi influenciada pela Teologia
Feminista. Partindo das
contribuições de Ivone
Gebara a autora
salienta a invisibilidade das questões
de gênero para pensar-se
a opressão das mulheres
nas reflexões da Teologia da Libertação. Mesmo ocupando
os mais variados espaços na ação prática nas Pastorais Populares, o da elaboração teórica ainda não lhes era dado; seu trabalho, por ex-
celência, era o cuidado. O surgimento desta teologia, a partir de uma hermenêutica das mulheres, dá-se pura e simplesmente por ousadia
destas, e não por espaços
concedidos pelos altos
escalões, dominados por homens.
Embora mulheres participem ativamente nas atividades
e práticas da PPU, algumas assimetrias de gênero são salientadas pela autora, como, por exemplo,
o fato de a atuação
destas ser, ainda, uma espécie de serviço, geralmente voluntário. As novas leituras da Bíblia
por parte das mulheres não possibilitou superar as assimetrias de gê- nero dentro da PPU.
Ainda na linha da atuação das mulheres
em
movimentos ligados
às
causas populares,
Vera Sirlei Martins contribui
com algumas refle- xões sobre o
Movimento de Mulheres Camponesas do Rio Grande do
Sul
(MMC-RS) através do jornal Desperta
Mulher. O esforço da autora concentra-se na análise de conteúdos de destaque explicitados nas edições
do referido jornal (a exemplo da violência
doméstica). As rei- vindicações por justiça social no ambiente rural se mesclam, a todo o
momento, com a vivência
de mulheres militantes engajadas que são
desafiadas,
mas,
que também,
desafiam noções naturalizadas
do que é
“ser mulher”, na medida em que vão ao espaço público,
este enten- dido como lugar
“natural” de homens. Investe no empoderamento e na emancipação das mulheres camponesas, dá
visibilidade às mulheres, comumente
invisibilizadas pela grande mídia.
Em artigo que abre a
segunda parte do livro, intitulada “Gênero e Sexualidade”, Daniela Senger discorre sobre as formas de pensar-se
a sexualidade humana, homossexualidade, família e matrimônio
no meio protestante
luterano, a partir de discussões realizadas na 10ª As- sembléia da Federação
Luterana Mundial (FLM), cuja temática central
foi “Matrimônio, Família e Sexualidade
Humana”. Trazer à tona tais discussões no meio luterano, sob o primado da defesa dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana
como expressão da vonta-
de de Deus, consolidaram-se como passo fundamental no respeito às famílias
em suas mais diversas
configurações. A análise
das Escrituras e das questões morais nestas explicitadas de forma contextual, assim como proposto
por Lutero, é um dos critérios utilizados pela FLM para proferir sua percepção acerca dos assuntos relacionados à família
e à sexualidade humana.
Realizado sobre bases bíblicas e teológicas, as igrejas-membro da FLM adotam postura menos tradicionalista com
relação à sexualidade humana e, de maior abertura no que se refere às homossexualidades, ainda que o assunto seja tratado
apenas de maneira superficial em documentos oficiais, tanto da FLM como da
Igreja Evangélica
de Confissão Luterana do Brasil (IECLB). É um tema ainda em aberto. A igreja, que se coloca como defensora dos direitos
humanos, não deve silenciar-se frente
à temática da homossexualidade,
ainda controversa para a religião.
Luciana
Steffen contribui
para a temática de gênero e sexualida-
de apresentando reflexões
sobre diferenças de gênero em meninos e meninas
com deficiência. Demonstra como se dá a desigualdade nessa inter-seccionalidade em que se mesclam relações de gênero e o fato
de ser deficiente físico. Segundo a autora, os papéis de gênero definidos socialmente têm impacto na vida de meninos e meninas deficientes. O espaço
doméstico, culturalmente relegado à mulher, e o espaço
público como lugar “natural”
do homem na sociedade são negados às crianças
deficientes na medida
em que não atendem àquilo
que se espera
dentro dos papéis de gênero.
É na crítica de desconstrução desses pressupostos e do estimulo ao empoderamento de forma independente, também, das questões de gênero, que está o cerne da ética feminista do cuidado,
através da busca
pela equidade no cuidado de pessoas com deficiência,
e na não-reprodução de estereótipos e preconceitos sexistas.
O artigo
de Thayane Cazallas
do Nascimento inicia-se
com a imagem de uma mulher gestante que representa
o cansaço para com as opres- sões
de gênero que ainda se perpetuam na sociedade contemporânea. A mulher da referida
fotografia chama-se Luiza
e em sua barriga lê-se
o seguinte protesto escrito
à tinta: “por um mundo sem sexismo”.
Através da história de vida de Luiza, a autora trata do ser mãe e do processo de educar a partir
de uma perspectiva queer.
Luiza, como mãe, investe
em
uma educação que foge aos padrões sexistas e assimétricos de gênero, que questiona as normalizações correntes do “rosa” e “azul”, na medida em que desconstrói classificações, a exemplo
de “coisas de menino” e “coisas de menina”. A vivência enquanto ativista, mulher e mãe permitiram à Luiza perceber todas as potencialidades da educação queer para com seu filh@ (a @ é utilizada tanto pela mãe como pela autora do artigo), e mostra possibilidades para além das formas que reproduzem assimetrias e opressões de gênero.
Encerrando essa segunda sessão temática do livro, Lori Altmann traz sua experiência com o povo
indígena Kulina, em diálogo com a obra “O
gênero da dádiva” de Marilyn Strathern, marco na literatura
sobre as questões de gênero na Melanésia, na medida em que percebe, nos
rituais de troca, assimetrias de gênero, no qual a postura daquele que
dá algo representa o masculino, o ativo; aquele
que recebe, ou o que é
objeto de troca, representaria o feminino. Desta forma, e considerando
que aquele que deu algo também receberá,
e que aquele que recebeu também dará em determinado momento, feminino e masculino se mos-
tram
construções culturais nada estáveis, mesmo que os processos de normalizações de nossa cultura
ocidental o façam
parecer. Ao demons- trar que as relações de gênero se dão de forma diferenciada entre os Melanésios, Strahern auxilia na própria desconstrução de um modelo
ocidental que estabelece
papéis sociais, e que é tido como natural.
A terceira parte do livro versa sobre questões referentes ao sexis- mo, violência
e políticas públicas.
As manifestações de julho de 2013, o suposto
“acordar do gigante”, as proporções tomadas
e os discursos evocados foram objeto da discussão de Daniéli Busanello Krob, que identificou, em meio às passeatas
nas ruas de todo o país, uma gama de
discursos machistas e sexistas que se fizeram
ecoar. Salienta que
as reivindicações do movimento de mulheres, historicamente secundariza- das e invisibilizadas, nunca interessaram àqueles
que saíram às ruas na “primavera brasileira”, o que se comprova
pelos numerosos bordões sexistas proferidos
através de falas, cartazes e outros instrumentos utilizados nas manifestações, sobretudo com o intuito
de ofender a presidente Dilma Rousseff. Maior
que a oposição política e ideológica às posturas adotadas pelo governo Dilma, observam-se discursos a ofen- dem
única e exclusivamente por ser mulher. Mais
ainda, por ser mulher
atuante no espaço público e, portanto, fora dos padrões
de gênero por ocupar um lugar que não lhe pertence. Neste contexto,
a autora traz as contribuições da teologia feminista
como instrumento de libertação de estereótipos enraizados em nossa cultura misógina, salientando a necessidade do trabalho na igreja no enfrentamento e prevenção
da violência contra a mulher.
Rogério Oliveira de Aguiar, por sua vez, traz uma reflexão acer-
ca
da
diaconia
cristã
ensinada por Jesus como oposição
ao discurso sexista e, este último, como negação da própria mensagem cristã. Coloca a diaconia enquanto a própria
essência da Igreja Cristã e como componente
fundamental da identidade do cristão. Paradoxalmente,
a prática da diaconia, do “servir”,
associada ao papel relegado
às mu- lheres no meio religioso
recheado por assimetrias de gênero,
pode, à luz da teologia feminista, converter-se em práxis libertadora, através
do empoderamento e do fazer-se
sujeito do próprio
destino. Para isso, torna-se fundamental o diálogo com a teologia feminista
que, há tem- pos, investe no resgaste
do cerne da mensagem cristã, e que fornece subsídios teológicos para a crítica e enfrentamento do sistema
patriar- cal, sexista, homofóbico e androcêntrico que compõem,
ainda hoje, as bases
das estruturas eclesiásticas.
A violência doméstica e o papel, muitas vezes exercido pela reli-
gião, de fortalecimento e perpetuação das opressões de gênero são explicitados no artigo de Lilian Conceição da Silva Pessoa de Lira e Roberto E. Zwetsch.
A perspectiva dos/as autores/as
aborda questões inter-seccionais, na medida em que se detêm na análise a respeito das mulheres negras em situação
de violência doméstica
e o acolhimento feito a estas. Consideram como pressuposto fundamental que a religião tem sua “parcela
de culpa” na situação a que ainda são submetidas muitas mulheres, mas, consideram que se a religião é capaz de reforçar
assimetrias de gênero
também o é no sentido
contrário, ou seja,
na des- construção da cultura de violência contra a mulher,
sendo componente de libertação
e de promoção
da dignidade das mulheres. Com Ivone Gebara, consideram imprescindível o trabalho
de feministas nas cadeias
religiosas dos meios
populares, sobretudo quando
se considera que são
as mulheres pobres e negras
aquelas que majoritariamente constituem o público das igrejas.
Salientam a existência
de grupos em luta pela dignidade da mulher no meio religioso, apoiados na teologia
feminista, como o grupo Católicas
pelo Direito de Decidir (CDD). Salientando a escassez de escritos
sobre o enfrentamento da violência
nos terreiros, trazem para a discussão
o Projeto Ajuenbó
e a Campanha Ponto Final
como instrumentos para romper cadeias religiosas, em um cenário de pobreza que tem cor e sexo.
O acolhimento de mulheres negras
nestes locais e o claro enfoque
feminista nas ações
contra a violência doméstica propiciam, a essas mulheres.
Um local no qual podem lutar por seus direitos de
cidadania.
A temática da violência doméstica é trazida novamente por Marilu
Nörnberg Menezes, o que demonstra sua importância. A autora aborda a
iniciativa desenvolvida pela Fundação Luterana de Diaconia
(FLD) no campo dos direitos humanos das mulheres, que recebeu o nome de “Nem Tão Doce Lar” e que busca tanto dar visibilidade à questão da violência doméstica, como mobilizar estratégias de enfrentamento para um problema que não diz respeito somente
à mulher, mas à sociedade como um todo (assola mulheres,
crianças, idosos e faz parte de um sistema patriarcal que coloca a superioridade construída do homem como algo natural).
As intervenções realizadas pelo Nem Tão Doce Lar revelam,
também, uma dimensão diaconal pública e profética
que
pensa, como parte
da missão da igreja, ir ao encontro
dos sofrimentos e das dores do mundo, dos quais, evidentemente, faz parte a violência
doméstica, a qual também se define como violência
de gênero.
Por fim, também Adriana Dewes Presser dá sua contribuição ao fundamental debate
acerca da violência de gênero no âmbito doméstico, desta vez evidenciando como a violência
causa graves problemas à saúde física e mental das mulheres.
Aponta as Conferências Mundiais Sobre a Mulher, realizadas pela Organização das Nações Unidas
(ONU), como momentos de suma importância para que se começasse a pensar
a violência de gênero e seus impactos na saúde de mulheres. As prin- cipais conferências que introduziram e prosseguiram com o debate no Brasil
também foram pontuadas, tendo sido realizada, no ano de 2004,
a I
Conferência Nacional de Políticas para
as Mulheres (CNPM).
Aponta importantes políticas públicas
instituídas no país com o intuito de com-
bate
à violência doméstica,
como as Delegacias
de Defesa da Mulher,
as Casas-Abrigo, os Serviços de Aborto Previsto
em Lei, os Comitês de Vigilância à Morte Materna
e os Centros de Referência
de Atendimen- to às Mulheres em situação de violência, nos quais a violência
contra a mulher deixa de ser um assunto do campo exclusivamente privado, tornando-se necessária, também, a intervenção do poder público. Deixa, também, de ser caso de polícia, e torna-se
questão de saúde pública,
sendo um dos marcos dessa virada a criação do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM). Entretanto, o abandono
do PAISM como proposta
nacional mostrou negligência para com a saúde de mulheres
pobres, que passaram a utilizar-se
de métodos contracepti-
vos muitas vezes sem a orientação
necessária de como fazê-lo,
o que traz malefícios à própria saúde da mulher, além de poder resultar
em gravidez indesejada e aborto. A saúde reprodutiva da mulher é, ainda,
questão de urgente investimento por parte do poder público. Esta tem sido uma das principais pautas do movimento feminista.
A última sessão do livro, que recebe o título de “Religião
e teolo-
gia” É inaugurada por artigo
de Edla Eggert e Marcia
Leindcker Paixão. As autoras se propõem a dar foco, no que se refere à Reforma Pro- testante impulsionada por Martinho Lutero e demais teólogos,
a uma personagem muitas vezes esquecida
na história escrita
pelos homens:
Katharina Von Bora, esposa de Lutero, e que também contribuiu para a Reforma
através da produção
de uma teologia do cotidiano, pensada e refletida a partir do espaço doméstico da cozinha, naturalizado como lugar da mulher
por excelência. Ao utilizar-se de uma hermenêutica femi- nista da suspeita, as autoras salientam que Katharina pode,
efetivamen- te, ter contribuído para os debates
teológicos que originaram a Reforma à sua própria maneira,
o que também transformaria a forma de ver as próprias bases teológicas da Reforma contadas pelos homens. Através do exemplo de Katharina
Von Bora, as autoras afirmam a importância de que haja mais mulheres
latino-americanas feministas interessadas
na produção do conhecimento teológico. Salientam a importância
de mostrar essas
mulheres, criadoras de suas próprias
teologias, que foram invisibilizadas
na história contada pelos homens.
Marcia Blasi propõe uma reflexão acerca dos princípios do acon- selhamento pastoral em perspectiva feminista, ou seja, um processo de aconselhamento dedicado às mulheres, que se desenvolva com base na teologia feminista, de forma consciente e crítica em relação às assimetrias de gênero
e a outras formas de opressão
e discriminação. Seguindo a proposta
de Christie Cozad
Neuger, um primeiro
princípio do aconselhamento pastoral em perspectiva feminista é a percepção do pa- triarcalismo e da depressão como elementos que afligem e que causam sofrimento à vida das mulheres e que estão
intimamente relacionados, na medida em que a depressão é consequência da desvalorização da mulher, do sexismo presente em seu cotidiano, desvalorização esta que se
dá no mundo do trabalho, na violência doméstica, na imagem criada pela mídia etc. O relacionamento de igualdade
entre aconselhadora e aconselhada é outro princípio
destacado, no qual o foco não são as fra- quezas de quem está
sendo aconselhado, mas as potencialidades. O pa- pel primordial da aconselhadora é dar subsídios para o empoderamento de sua aconselhada. A necessidade de um grupo é o terceiro elemento fundamental, pois permite o sentimento de pertença
à comunidade e a percepção de que são injustiçadas da mesma forma,
através do com- partilhamento de experiências, de histórias de vida. Com a perspectiva centrada na mulher,
o quarto princípio
destacado por Marcia Blasi enfatiza
a necessidade de explorar
criticamente os assuntos trazidos
pela aconselhada e de observar as opressões que se entrecruzam (raça, etnia, sexualidade, geracional etc.). Por fim, a percepção,
por parte da aconselhadora, de que toda a psicologia tradicional e a teologia foram elaboradas
por homens e que, portanto, sua atividade deve ser cuida-
dosa e de questionamento.
A questão de mulheres portadoras do vírus HIV/Aids
e o aconselha- mento pastoral também são elementos
contemplados na obra através do artigo de Elisa Fenner Schröder. O HIV/Aids
era considerado, na década de 1980, uma espécie de “peste gay” por atingir,
no início, prin- cipalmente homens homossexuais. Esse quadro tem se modificado com o passar dos anos e, por conta das desigualdades de gênero, o que se
tem visto é uma “feminização” da epidemia, que atinge principalmente mulheres de baixa renda
e escolaridade, negras
em sua maioria. Nestes casos, serem portadoras
do HIV/Aids, somados à condição
de serem mulheres,
pobres e negras, faz com que estejam submetidas
a uma gama de fatores
de discriminação. A autora considera que a comunidade cristã, através do aconselhamento pastoral, pode configurar-se como ponto de
apoio e como espaço que permita o compartilhamento de experiências por
parte dessas mulheres. Daí a necessidade de trabalhar-
-se a Bíblia, relacionando-a com a realidade de mulheres portadoras do HIV/Aids,
propiciando, a essas pessoas vulneráveis, a possibilidade
do encontro com Deus.
Por fim, o trabalho que encerra a obra é de autoria
de André Sidnei Musskopf, no qual trata do impacto da produção teológica feminista
e de gênero no contexto
da academia, mais especificamente, nas graduações
em teologia das Faculdades
EST, instituição esta que tem destaque nesta
área de conhecimento, dada a existência de disciplinas obrigatórias sobre Teologia Feminista e a criação do Projeto “Cadei-
ra de Teologia Feminista”, posteriormente substituído pelo Projeto
“Programa Gênero e Religião”, além do fomento e reconhecimento dos estudos feministas e estudos de gênero na relação com a religião. Através de trabalhos acadêmicos produzidos por estudantes de gradua- ção, o autor procura
demonstrar como se tem apresentado os estudos sobre teologia
feminista e de gênero,
e as formas de (in)visibilidade que marcam a presença destes na academia. Os dados apresentados
pelo autor revelam que, a despeito das várias formas de invisibilidade às quais são submetidas,
por muitas vezes, as produções intelectuais
de mulheres e homens que abordam a teologia feminista e de gênero, como consequência do próprio contexto
social e cultural
ainda repleto de desigualdades de gênero, as Faculdades EST tem se destacado nesta área do conhecimento. Entretanto, a mudança
da Cadeira de Teologia Feminista para o Programa Gênero e Religião e cortes de orçamento
que marcaram a história
da instituição, revelam fragilidades a serem, ainda, enfrentadas.
Visibilidade, este é o tópico que encerra as discussões levantadas na presente obra, mas que perpassa o texto por completo. Em palestra na Universidade de São Paulo,
o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos salientou, referindo-se à sociologia
das ausências, que aquilo
que não existe
é construído para que, justamente, passe despercebido.
Os debates sobre gênero e sexualidade, sobretudo nas perspectivas da teologia e das ciências
da religião, fazem
parte dessas inexistências que, inclusive, a própria academia tem ajudado a construir e a naturalizar.
É, portanto, nesta briga de “cachorro
grande” que a presente obra se insere e mostra sua pertinência em uma luta que ainda é de nossa responsabilidade: uma luta pela visibilidade, pelo fim
do silenciamento e pela voz daquelas
e daqueles que sofrem,
emudecidos, as opressões de gênero.
Comentários
Postar um comentário